reflexões

Humor em jogos narrativos

– por JORGE VALPAÇOS

Submeti uma proposta de comunicação a um evento de jogos: Humor e RPG, tema que considero pouco tratado, mas que é muito interessante. A proposta não foi aprovada. Faz parte do jogo. E talvez aquela negativa tenha sido algo bom. Tive mais tempo para refletir e posso me expressar por meio deste ensaio, onde me sinto mais confortável.

Enfoque

Este texto trata de jogos de inventar histórias, sejam eles RPGs ou não. Party Games, por exemplo, costumam se valer do humor em sua jogabilidade, na estética ou como efeito de sua participação. Mas focar a análise em jogos nos quais nos enredamos a enredos processualmente pode nos ajudar a pensar em questões mais complexas sobre o jogar.

Além do “gênero”

Não é incomum que jogos narrativos sejam classificados como de horror ou terror. Mesmo que eles sejam acompanhados por adjetivos como “medieval”, “distópico”, “psicológico”, etc, o que serve à modular a ambiência, o “clima durante o jogo”, costuma definir jogos que causam desconforto, tremeliques, sudorese e repulsa. Curiosamente isso não acontece com jogos que provocam o riso, ou situações aprazíveis e confortáveis, e que normalmente flertam com a comicidade durante o jogar.

E cabe destacar que não há uma necessária oposição entre horror e humor. Temos inúmeros exemplos da presença de ambos juntos. Pensando em filmes, não é raro ver uma situação cômica associada à morte de uma personagem, por exemplo. Podemos ter uma história de terror criada sobre a estrutura de uma piada, como na filmografia de Jordan Peele. Ou ainda, podemos nos lembrar de A Fantástica Fábrica de Chocolate, o quadrinho Cinderala ou Alice no País das Maravilhas, que fundem as experiências de propósito.

Contudo, estes “irmãos na transgressão” são tratados de forma bem diferente na ludografia narrativa. E talvez até mais que em outras mídias, como séries, filmes e quadrinhos. Enquanto o horror se tornou um “gênero” (algo que discordo, preferindo considerá-lo como um meio, proposta, ou condutor da experiência), o humor é tratado como algo menor, bobo, infantil, “no território da brincadeira”, ignorado, ou meramente subjetivo, nas mãos das participantes e/ou da pura descrição diegética (“Essa montanha fede mais que a roupa dos aventureiros”). Mas o não dito, sabemos bem, costuma dizer muito.

Humor, diegese

São várias as formas nas quais o humor e a comicidade se apresentam em jogos narrativos. A mais comum, e normalmente faz com que pensemos que “há humor neste jogo”, ou que este jogo é “engraçado” é a presença de conteúdos irônicos, satíricos ou mesmo sem sentido no que normalmente é chamado de cenário do jogo.

Pode ser algo bem explícito, como no Condado Noctempluft de Magos Lacunares da Torre Púrpura, com suas Ilhas Canoras, Serra Escorrega e gambiotrecos tecnomágicos. Mas o humor pode ser mais sutil, encapsulado na releitura de tropos ficcionais. Em A Trupe temos um cenário de fantasia sombria com trabalho forçado, violência, tirania, monstros, mortos-vivos e situações de opressão. Mas o mundo é apresentado pela perspectiva brincante dos artistas de rua. E isso muda tudo. O mundo hostil é apresentado enquanto troça, subvertendo-o enquanto faz quem lê o manual do jogo evidenciar como Monópolis é ridícula. E assim, por meio do riso, a gente descobre os absurdos supradiegéticos, ou seja, do mundo “fora do jogo”.

E aí está algo bem peculiar em relação ao humor em jogos narrativos: se em horror em jogos o estabelecimento de barreiras entre ficção e não-ficção é algo central, sendo sua negociação parte do design, quando o assunto é o humor, ele normalmente mira pra fora da diegese pra ativar o riso. O personagem no horror teme, mas quem ri no humor costuma ser quem participa. E aí temos nuances, complexidades e uma série de discussões que normalmente não são tratadas.

O humor diegético não precisa se restringir à descrição do cenário. Humor também é tempero. Ele pode subverter expectativas ou apresentar mais camadas a uma suposta verdade. O feitiço que transforma o alvo em uma galinha, algo que é parte da tradição lúdica, é um exemplo que quebra, de piada. Um tesouro sem valor ou amaldiçoado, um equipamento muito pesado para carregar, lendas engraçadas e contraditórias sobre uma locação. Há várias formas de distribuir, ou melhor, semear o humor na ficção. Até mesmo numa troca de cartas encontradas em uma aventura pode haver uma piada entre os correspondentes.

Há humor na vida, e ele pode fazer com que o universo ficcional seja mais diverso e envolvente, passível de cumprir seu papel de ser uma mentira coletivamente construída e acreditada enquanto inutilidade que o jogo é. Mas, se o humor chega sem cerimônias em nossas vidas, como fazer com que ele apareça sem um necessário roteiro, mas com alguma coerência durante os jogos?

Humor, estética

Trato por aqui os elementos que se relacionam com a percepção do humor por parte de quem participa (lê/joga/cria), e não das personagens na ficção. O uso de cores, os recursos textuais como figuras de linguagem, a diagramação, e sobretudo as ilustrações alusivas à comicidade geram a pré-figuração diegética, criando o “clima” que se pretende ao jogar histórias.

Em manuais de jogos narrativos encontramos referências a estilos de ilustração cartunescos, tipografias usadas em quadrinhos e recursos estilísticos de zines, panfletos e outras expressões artísticas urbanas e contraculturais. Mas também é possível encontrar referências a estilos artísticos mais específico, como mangás/animes, o imaginário do faroeste criado pelo cinema italiano, os neons cyberpunk ou até mesmo as convenções da chamada “fantasia medieval”. Ao lidar com o humor e abraçar o estilo diegético, porém, temos quase sempre uma sátira ao estilo referido. Por exemplo, em uma parede de castelo, numa ilustração do manual, há vários brasões de famílias importantes ao cenário. Mas no lugar de encontrarmos dragões, lobos e leões, vemos cachorros-quentes, sacolés e pés-de-moleques.

Outro caminho está na contradição estética, no ruído que se realiza como uma piada a quem interage com o manual do jogo. Todo o livro pode ser sombrio, com ilustrações passando muita tensão, mas o texto apresenta um mundo repleto de frestas por onde a risada pode fugir. Uma página inteira em vermelho e preto com um texto capitular descreve o rito de passagem que todas as crianças devem passar: atravessar uma piscina de bolinhas, ou melhor, o “mar de esferas”.

Muitas nuances podem derivar da análise da relação entre a estética de jogos narrativos e o humor. Ainda mais se expandimos a compreensão da estética para além dos manuais de jogos. Todos os componentes manipuláveis do jogar (dados, fichas, etc) e os procedimentos relativos à dinâmica que mexem com os nossos sentidos também fazem parte da estética. E em cada uma destas expressões há oportunidades para que o humor se expresse, ainda que sejam mais raras que em outros tipos de experiências ludonarrativas.

Humor, regras

Há graça na graça que o jogo faz com o jogar. Ok, eu já me diverti muito com cenários, personagens e aventuras criados para serem engraçadas. Uma fala de uma coadjuvante, uma placa que conta a história de uma praça, ou apenas o nome de uma montanha já foram fonte de risos que dei e que proporcionei em partidas. Mas quando o humor nasce de uma regra do jogo, é diferente. Ele emerge na história, durante a partida, e não antes dela.

Quem imita melhor um pirata começa a ação. Cair de grandes alturas não mata a personagem, mas como ela é um desenho animado ela fica achatada, recebendo penalidades para alcançar lugares altos, mas bonificações para se esgueirar por baixo de obstáculos. Zerando sua pontuação de saúde, você pode ludibriar a morte e até pegar umas dicas com ela para quando voltar à ação. Todos estes são exemplos de regras de jogo que entregam um humor metalinguístico. Em todos os casos é você quem engaja com o humor para modificar a tessitura narrativa.

Por vezes o humor se articula com mecânicas específicas que “quebram as regras”, posicionando a comicidade como uma piada com o próprio jogar. O humor então se realiza enquanto transgressão-reflexão-crítica, e o endereçamento da piada ao jogar e às convenções da prática lúdica revigora a própria tradição de jogar e criar jogos. Eu persegui isto, por exemplo, nas metapoesias de A Trupe, ou na própria dinâmica que anti-controle que sustenta o sistema Enred@ção, que mobiliza Cruzos.

Humor, por que não?

Não quero esgotar – e nem sei se isso é possível – as possibilidades de reflexão sobre jogos narrativos e humor. Neste ensaio eu apenas tateei algumas possibilidades para criar e analisar aventuras, manuais de jogos, cenários e até mesmo as regras, quando o humor está presente, mesmo que pontualmente.

Quero dar destaque ao humor em jogos narrativos, e tentar responder à questão: se há tanta potência em torno do humor, por que ele costuma não ser tratado com atenção? Não falo de fazer piadas sobre jogar, sobre agir de forma divertida durante as partidas, mas falo de analisar criticamente a intencionalidade e o design que impulsionam o humor, este poderoso modo de se expressar, e, por conseguinte, de jogar histórias.

Por que não falamos sobre a criação e sobre os detalhes de jogos narrativos que dialogam com o humor? Por que há debates sobre o medo/horror em jogos, assim como análises sobre mecânicas específicas para tratar histórias de capa e espada, viagens espaciais e outras temáticas e não nos dedicamos a pensar nos “componentes lúdicos” ao tratar o humor em jogos narrativos?

Questões complexas. Mas talvez a própria complexidade do humor nos ajude. O humor não é algo banal. É difícil, complexo mesmo. Ainda que possa parecer fácil de levá-lo aos jogos, defendo que esta é uma das armadilhas que bloqueia o debate de humor em jogos.

O humor é histórico. Ele se modifica com o tempo. É distinto no espaço, possui nuances de gênero, raça e classe. É político. É expressão cultural. É disputado. É plural. Não há algo impassível de crítica que lide com humor e nada garante que em 10 anos ou menos aquela coisa engraçada “perca a graça”.

Mas em espaços “pop/geek/nerd” o humor não costuma ser analisado, criticado. Fórmulas que sustentam ataques a minorias sociais insistem em várias expressões neste nicho, e quadrinhos, animações e jogos narrativos fazem parte desta conjuntura. Sob a bandeira de “liberdade” contra a pretensa “censura”, o humor perde sua potência transgressora e reitera o status quo. Debater sobre o humor em jogos seria apontar suas fragilidades e propor outras soluções na criação dos jogos. Então, escora-se na pura subjetividade para “fazer piadas” para não discutir, e assim manter a hegemonia.

O posicionamento dos jogos narrativos dentro do universo do entretenimento, sendo este dominado pelo imaginário da “diversão” também é parte das respostas às questões. O senso comum compreende jogos (filmes, séries, etc) como algo pra entreter, para divertir, e associam tudo isso ao humor. A questão é que… nem sempre, não é mesmo? Ir ao cinema pode ser para além de rir, mas para chorar, se emocionar, é algo tão diverso. Mas jogos são ainda mais associados à diversão, quase sempre acrítica…

Além de comprometer outras possibilidades, outras faces do jogar, esta associação entre jogar e “se divertir” esvazia a crítica sobre os jogos desenhados para lidar com a comicidade. Uma vez que “todo jogo tem de divertir”, pra que se dedicar em pensar sobre o humor em jogos? E mais, com está expectativa, gera-se quase uma necessidade da risada, da gargalhada, mesmo em jogos que em nada ter a ver com o humor. Sim, sei que rimos pela apreensão, pelo nervosismo. Não falo disso, mas quando se força a barra pra “parecer divertido”. E quando “tem de ser engraçado”, a graça se esvai.

Também há a relação entre o humor e uma imaturidade/infantilidade/bobagem, uma imagem contraposta ao “jogo sério e adulto”, com temáticas maduras. O “jogo bom de verdade” é “sério”, o resto é bobagem. Falso dilema. Pode haver complexidade, maturidade e política em jogos com humor. E jogos “adultos” podem ser vazios, apelando para violência, por exemplo, para justificar a sua pretensa maturidade.

Além disso, a visão pejorativa da infância e do lúdico “bobo” é absurda. Jogos não precisam ser, necessariamente complexos ou sisudos. A ludicidade, o lirismo, o universo onírico e até o sem sentido brincante, fazem parte da ludicidade e alimentam a cena. E mais, criticar a ludicidade “ingênua” reverte tudo ao redor de cinismo e azedume. O “jogo sério”, e por conseguinte, “elevado”, dificilmente sonha, imagina outros jogares e outros futuros em jogo (e fora dele). E assim o adulto/maduro se torna sinônimo de trágico, vil, distópico e desesperançoso.

Enquanto criador de jogos, escritor de brinquedos de jogar histórias, diverjo. Costumo lidar com o humor crítico em meus jogos, com mais ou menos sonho e troça. Não deixarei de lidar com o horror, por exemplo, mas sempre vou me dedicar ao riso transgressor do próprio jogar. Também, por outros caminhos, me dedicarei ao riso bobo, “infantil”. E posso brincar com isso, com humor na seriedade das crianças, por exemplo.

Ainda acho que essa conversa toda dá muito jogo. Ah, se dá… O que você acha de tudo isso?

Um comentário em “Humor em jogos narrativos”

  1. Muito pertinente. Eu sofro de um mal que é usar humor como escudo e espada. Serve bem pra mim nesses 42 anos, menos numa mesa “seriona” de baixa fantasia, terror “psicológico” ou algo do tipo. Os tópicos levantados são considerabilíssimos para quem, como eu agora, está desenhando jogo. Fico feliz que levantou essa bola.

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