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Tênis & Feitiços versão expandida: diário de criação 03

– por JORGE VALPAÇOS

Tênis & Feitiços é um RPG sobre jovens bruxas, comédia, ocultismo e dramas adolescentes. Confira a entrada anterior deste diário criativo aqui.

Outro jeito de me expressar?

“Você escreve de uma forma muito fechada, hermética, críptica”. Ouvi um tanto disso durante minha ludovivência. Curioso que quem mais dizia era quem estava acostumado a ler manuais de rpg de mesa. Talvez porque eu nunca criei um manual do jeito que os manuais de rpg são escritos: formulaicos.

Ainda que saiba que um manual de jogo deva ter orientações para quem vai participar, nunca considerei o texto como algo isento de lirismo e poesia. Por isso, ao invés de ir me moldando aos ditames do “mercado”, poetizava, brincava com a linguagem.

A necessidade de ter uma linguagem precisa em Herdeiros dos Antigos (afinal, a temática é super delicada) e em Lições (o melhor manual de jogo que já escrevi e acho que jamais chegarei naquele nível outra vez) me levou ao lado oposto. Mergulhei na polissemia e lirismo com Amores da Vila do Caju e na Trupe, ginguei na ponta da pena ao criar Cruzos e abracei a oralidade no Bonde Fantástico.

Tênis & Feitiços segue a premissa de incorporar no estilo do texto a própria proposta do jogo. Você vai encontrar crushes, contatinhos e tantas expressões em torno do que seriam os dramas de jovens bruxas. Fala-se muito sobre a relação entre as regras e a proposta do jogo e sobre o universo ficcional e as mecânicas. Mas se a redação de um texto é o meio que eu tenho pra comunicar o convite que faço para que você jogue comigo, te apresentar o clima, a tônica do jogo já durante a leitura é o mínimo que penso que devo fazer para retribuir o investimento de tempo e esforço de quem lê e joga meus brinquedos de jogar histórias.

E isso não seria possível em apenas um panfleto. A fruição da leitura emergente de T&F permite isso, algo que experimentei de forma radical em Amores da Vila do Caju e que também está presente em Gavaret, A Trupe e Cruzos. Nesta nova forma de me expressar em jogos, você não precisa ler o texto antes, mas durante a partida.

Na verdade, o manual não faz sentido se for lido numa sequência linear. Suas sessões foram criadas para serem acionadas por meio das mecânicas do jogo. Em resumo, você vai ler o livro jogando e criando narrativas moduladas pelas suas decisões, manipulando recursos e ativando manobras que reposicionam a função de um manual de jogo. E essa dependência calculada me põe ao seu lado a cada jogada – sem apelar para a paranormalidade, eu acho. Ensaiei esta proposta ao criar Valkíria RPG, que inaugurou o Fortuna, conjunto de mecânicas presentes em Cruzos e em meu futuro jogo, Agentes do Acaso. Para mudar o jeito de jogar, mudei a forma de redigir manuais, alterando a própria função de um manual de jogo. E basta analisar T&F para ver como isso acontece.

Como disseram, passei a fazer “outras coisas”.

Brincadeiras de jogar histórias?

Não é raro que considerem brinquedos e brincadeiras inferiores a jogos. Seja no senso comum ou em estudos da ludicidade, os jogos são tomados como mais elaborados. Temos algumas definições clássicas que afirmam que brincadeiras não possuem regras e estruturas mais formais em comparação a jogos, e que os últimos possuem condições de conclusão, enquanto as primeiras não.

Mas as fronteiras entre jogos e brincadeiras são tênues ao tratarmos rpgs ou outros jogos narrativos. Dificilmente há um limite, um fim de jogo, o que faz com que a experiência seja próxima ao brincar. Ainda que haja alguns jogos com condições discretas de vitória e derrota (como A Trupe, Gavaret e o próprio Tênis & Feitiços em sua versão expandida), é mais comum que a conclusão das histórias jogadas sejam mais abertas, circunstanciais e subjetivas.

Outra característica que cinge a experiência de brincar da de jogar é a manipulação dos elementos que sustentam a experiência. O design de jogos costumeiramente é centrado em mecânicas de resolução de conflito e na arbitragem de condições de sucesso e fracasso. Já as brincadeiras se orientam à abordagem sensorial da atividade, e possibilitam rearranjos de seus componentes, sendo a criação da própria estrutura lúdica parte da experiência projetada. Basta observar a recorrência de capítulos que ensinam a brincar com meus jogos (presentes desde Herdeiros dos Antigos e Lições, capítulos chamados agora de Gambiarras) para notar o quanto eu me aproximo de uma tradição menos formalista e mais brincante quanto à ludicidade.

Ao brincar é esperado que se manipule o brinquedo. Ao jogar é esperado que se sigam as regras. Mas eu questiono esta cisão em meus jogos, sobretudo os mais recentes. E em Tênis & Feitiços não podia ser diferente.

T&F em panfleto tinha de ter regras fechadas, e não uma paleta de cores para você pintar. E a nova versão, seguindo a proposta que está desde Cruzos, quer que você brinque, possibilitando recriar (e recrear) o jogo. O jogar é brincante. E a brincadeira tem aspectos de jogo. Acho que os rpgs estão ali, negociando estas fronteiras. E digo mais, o jeito periférico de jogar é mais “brincadeira” que jogo. Um tanto de nossa tradição lúdica reside mais na manipulação do brinquedo que na assunção de parâmetros formalistas de delimitação de experiências. Não acho que isso seja bom ou ruim, mas muito do que nos distancia na criação, na apropriação e na construção da comunidade de jogos narrativos deriva desta posição ludossocial.

Sigamos brincando de inventar histórias.

Saiba mais sobre Tênis & Feitiços aqui, e ouça um podcast sobre este jogo aqui.

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