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Jogos internos

– por JORGE VALPAÇOS

Será que há uma forma típica de jogar RPG? Hum, pergunta capciosa. Responder com um “depende” deixas as coisas mais confusas, ainda que a incerteza seja um bom ponto de partida. Talvez foi o pensar sobre o ato de jogar enquanto um fenômeno – e não com categorias à priori – que me fez escrever esse texto, onde discuto as subpráticas lúdicas internas aos jogos, e como esses “jogos interiores” se decodificados e apropriados pelos jogadores podem ser positivos a todos na mesa de jogo.

Camadas

Muitos jogos possuem objetivos bem explícitos, e quão mais coesa é a relação entre as regras e o que se propõe pelo jogo, mais simples de se chegarmos a essa meta, que por vezes é definida como experiência.

Mas, além de atingir a meta, o jogar revela aos jogadores desafios internos aos jogos, é como se um – ou vários – jogos internos se desvelassem durante a prática. Há jogos que apresentam isso por sua abordagem evolutiva às personagens, outros que tratam da exploração de cenários ou ao crescimento coletivo do grupo como jogos internos possíveis.

Pesadelos Terríveis trata isso ao estabelecer a relação entre condição física e os Traços da Personagem, entre os Traumas Psicológicos e os Poderes, para além da mutabilidade dos Mundos e do próprio Sonhador. Logo, querer cumprir um Traço de Amanhã ou alterar um Domínio no Mundo dos Pesadelos é um possível jogo, seu jogo.

Por seu turno, Arquivos Paranormais – um dos próximos lançamentos – trata sua reputação na Agência como um elemento relevante, bem como suas relações com os outros Investigadores. E essas questões que podem parecer meramente subjetivas – o que a personagem deseja e o reflexo de suas ações em jogo – são pontos de motivação e engajamento aos jogadores.

O que desejo trazer aqui é a apropriação ativa (agência sobre o jogo, tomando ele completamente para si, e não apenas sua narrativa) pelos jogadores. Se eu sei que sou um aventureiro em busca de glória, o que eu posso fazer usando/jogando meu jogo interno para obter êxito? Se eu sou um Libertador em Déloyal e desejo obter junto a minha Trupe de Resistência o apoio popular – e sei que é uma das opções do CAL do Triunfo – o que eu ganharei com essa opção para as ações futuras? Isso seria algo que quebra a experiência de jogo ou atestaria a compreensão do jogo e de suas mecânicas?
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Imersão, combo e engajamento

Busco me afastar de definições apriorísticas sobre tipos de jogadores. Ainda que possa ser prático e funcional, estas definições por vezes se eximem do jogo que está na mesa. Pense bem, ainda que haja um conjunto de procedimentos que defina um fenômeno como “partida de RPG” a posição que você assume não deveria dialogar com a prática, logo, ao jogo X e, ao jogo dentro do jogo X que você joga com seus amigos?

É claro que o fenômeno social e o processo do jogar – além do que há de específico a cada jogo – são condicionantes fundamentais (a performance é componente do fenômeno, ainda que por vezes seja superestimada). Ocorre que grande parte do que consideramos substancialmente relevante em uma partida é um critério subjetivo, que por si só não determina êxito na prática coletiva. Falo da tal imersão.

O jogo enquanto processo é um fenômeno imersivo, já que o jogar normalmente trata de questões como suspensão de descrença, assunção de premissas e regras próprias e um certo posicionamento ficcional (e metaficcional, já que o papel “jogador” também é performado). Ocorre que mensurar o quão imersivo um jogo é/está é um falso dilema, uma vez que a imersão é uma condição de ativação do círculo lúdico. Noutros termos, você para de jogar não estando imerso no jogo; então, a questão não é estar dentro ou fora da personagem – interpretando em um RPG – mas avaliar o quão engajado com o jogo você está.

Essa ruptura entre o engajamento e a imersão é algo que faz sentido ao notarmos que o RPG é um jogo que funciona em diferentes níveis, e alguns deles nada tem a ver com a interpretação de papéis. Quando pensamos no “jogo dentro do jogo” ou mesmo de quanto XP precisamos para obter uma melhoria ou qual a próxima manobra teremos voluntariamente não interpretamos um papel, mas estamos engajados com o jogo.

Mas essa separação não é abrupta, há vias que conectam o componente lúdico ao narrativo, e é como isso se dá que merece um destaque. Se há coerência entre os mecanismos de recompensa destes jogos interiores possíveis ao jogo que devolvem esse elemento à ficção (exploração em um jogo que fomenta não apenas a história da personagem, mas talvez de todo o cenário, por exemplo), isso não se torna algo definido apenas pela subjetividade dos jogadores ou do mestre. E isso é algo interessante de observar, ainda que por vezes não queremos ver/vemos em jogos que não curtimos muito. A árdua ascensão do poder de um bruxo é um exemplo disso, se o jogo interno decodificado pelo jogador é o flerte com o caos, receber recompensas poderosas e degenerantes devolve a ele o que ele busca (ainda que seja um marco, meta subjacente ao enredo da aventura, sendo planejado pelo jogador em seu jogo particular).

Por muitas vezes há críticas e divisões estranhas entre quem “comba e quer poder” e quem “interpreta”, como se esses jogos internos não fossem possíveis como camada de apropriação lúdica aos jogadores. Note, há jogo nos quais o “combo” está desenhado e disponível, e é quase que explicitamente entregue como um jogo interior. Outros jogos apelam ao drama (e cabe ressaltar que há potenciais combos narrativos e de conflitos sociais em vários jogos, como Sombras Urbanas, por exemplo).

Compreender a estrutura dos distintos jogos, suas propostas e os caminhos que eles ofertam aos jogadores para que os explorem é um baita passo para adensar o engajamento nas mesas de jogo, inclusive ao mestre. Sim, ele tem vários jogos internos possíveis, cabendo a ele pensar em como usá-los. Mas isso não soa estranho? Claro que sim. O mestre de jogo tem seus jogos explícitos em vários manuais. A sessão “do narrador” se dedica a explicar vários destes jogos. Ao jogador, há tabelas, dicas de interpretação e as regras básicas.
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Voltando ao tipo de jogador/mestre

Lembram que comentei que definir um tipo de jogador sem analisar com mais cautela o fenômeno jogar e as especificidades dos jogos? A questão fica mais tranquila de se pensar agora, depois de falarmos um pouco sobre o engajamento.

Vez por outra lemos que não há problema termos jogadores mais preocupados com a interpretação, outros mais táticos, etc. Mas o que estamos vendo são os jogos internos sendo jogados. A questão é: a despeito da forma que o jogador (incluso o mestre) se porta na prática, ele está engajado com o jogo?

Podemos ter aventuras incríveis, com grandes performers que dominam a interpretação de papéis. Mas essa interpretação se relaciona com o núcleo mínimo que chamamos de jogo? Essa pergunta pode parecer estranha, mas é bem provável que tenhamos testemunhado grandes cenas e, no momento seguinte, inaptidão ao manusear recursos e regras. Em uma situação tradicional poderíamos considerar a instância bem imersiva, narrativamente falando (considerando a performance um componente da prática), mas com um engajamento não muito interessante, sobretudo aos demais.

Mas esse exemplo acima não é único, o oposto também pode ocorrer (jogador apenas voltado às ações táticas e sem vida à personagem). Contudo, não sei se isso se deve ao “tipo de jogador” (um juízo à priori). Acredito que sejam as poucas interfaces de contato com o que o jogo propõe (em suas diferentes camadas e jogos interiores) que faz com que tais comportamentos sejam adquiridos.
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Em busca do engajamento sagrado XD

Muitas são as possibilidades que bloqueiam o engajamento com o jogo. A primeira é a mais simples: há problemas no jogo. Ele pode não entregar o que propõe, por exemplo. Veja, isso não é uma questão de gosto. Pense em um jogo que fala que tem por objetivo recompensar jogadores que economizam recursos e são estratégicos mas que dá as mesmas oportunidades a você, que segue isso, e a outro jogador que não raciona equipamentos e recursos e ataca explosivamente. Neste caso, se houver um jogo interior ao segundo jogador que o recompense por ele jogar dessa forma, ok, mas os 2 personagens teriam retorno (e provavelmente de forma distinta).

O segundo caso é um tanto delicado. Há muitos jogos com propostas bem distintas e que são jogados da mesma forma. Você não se importa com o jogo e projeta o seu “jogar” (sendo o jogador tipo X) a ele. Não digo que você não possa ter o seu estilo de jogo e seu jogo preferido, mas entender qual é o tom do jogo e “seguir o compasso para depois se arriscar na pista” é algo que considero interessante, até mesmo para que você se permita explorar as potencialidades daquele jogo.

O terceiro caso trata de problemas de interpretação do jogo. Há jogos que não são claros, outros carecem de generosidade interpretativa e enfrentamento do texto. Lê-se o resumo, uma ou outra ideia geral, visão de outros sobre o jogo e já partimos para a mesa. Sim, jogos estão para serem jogados, mas entender como as coisas funcionam e para quê estão lá é muito importante. Reforçando por aqui que sim, pode haver falhas na redação, na clareza da escrita e na própria coesão do texto. Porém, temos de contextualizar a leitura e a compreensão de textos como competências com problemas em nosso cenário educacional (inclusive no Ensino Superior), para além da correlação ao repertório uma armadilha ao lermos jogos, pois operamos com analogias que nos levam ao segundo caso.
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(in)Conclusões

O objetivo por aqui era apresentar o engajamento como uma potência às mesas e explorar o jogo em suas camadas diferentes (e por vezes difusas) como um componente que deve ser abraçado pelos jogadores. No lugar de ter o jogo – com regras e cenário – como um demiurgo e grande relógio, proponho o enfrentamento, a apropriação do mesmo, desvelando jogos internos e metas intercambiáveis pelo binômio jogador/personagens, sendo dessa tensão dialética, desse ruído entre a ludologia e a narrativa, o engajamento no fenômeno do jogar.

Boas apostas e um bom gerenciamento de recursos a todos!

Um comentário em “Jogos internos”

  1. O que me parece importante para jogos narrativos é que todos os jogadores entrem em consenso em torno de um mesmo tipo de relação com o jogo. Se em alguns jogos não é um problema um jogador engajar-se na busca de combos mecânicos, enquanto outro se engaja na exploração e expansão da ficção interpretativa, imagino que em jogos que prezam pela narrativa, isso possa gerar dissonâncias na experiência do grupo com o jogo.

    Aventuras Ancestrais, meu jogo de cartas narrativo, é um jogo que desde seu concept board ele propõe uma experiência de “contar e socializar histórias”, como os nossos ancestrais provavelmente faziam diante de algumas pinturas em rocha. No entanto, por ser um jogo de cartas, um baralho na mesa, as possibilidades dos jogadores se engajarem com o jogo e se apropriarem dele são diversas. Eu mesmo ainda estou explorando suas possibilidades, mas o que importa, no fim das contas, sempre é que a mesa siga a mesma proposta para que a narrativa seja fluida e todos se divirtam no final.

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